domingo, 18 de julho de 2010

Desabafo de um enófilo imbecil

É interessante e, ao mesmo tempo, desesperador, ver como muitas pessoas - para não dizer a maioria delas - deixam evidente a necessidade de criar verdades e respostas absolutas para as coisas.

No mundo do vinho isso não é diferente - talvez seja até mais evidente. Quanto mais o sujeito bebe, mais acredita que conhece vinho e mais tenta criar uma realidade que, para ele, deveria valer para todos. Alguns simplesmente se fecham em suas geniais e reconfortantes descobertas; outros, porém, tentam convencer o mundo de que descobriram o nirvana, aquele lugar ao qual nenhum outro homem foi capaz de chegar.

Um exemplo típico é a discussão a respeito da suposta superioridade dos vinhos europeus em relação aos vinhos do Novo Mundo - como se todos os vinhos da Europa fossem iguais e como se todos os vinhos do Novo Mundo tivessem o mesmo gosto e padrão de qualidade.

Frequento rodas de bebedores do Velho Mundo e de bebedores do Novo Mundo e, portanto, tenho bebido vinhos do mundo todo, o que me habilita a fazer alguns comentários a respeito dessa guerra sem vencedores. O primeiro deles é que esses "combatentes" não percebem que vinho é prazer e, portanto, é algo subjetivo, estritamente relacionado a experiências e gostos individuais. Claro que há padrões mínimos de qualidade, porém, esses padrões podem existir em diferentes contextos. Exemplo: os defensores dos vinhos tradicionais europeus criticam a fruta e o uso da madeira nos vinhos ditos, de forma pejorativa, "novomundistas"; já os amantes dos vinhos do Novo Mundo reclamam justamente da falta desses atributos nos vinhos mais tradicionais.

Também há os que gostam de vinhos mais potentes e jovens, que são duramente criticados por quem bebe vinhos quase moribundos, com aromas que, para o primeiro grupo, podem remeter à putrefação. Mas um bebedor de vinhos "evoluídos" - reparem o duplo sentido deste adjetivo - vai dizer que "agora sim o vinho está redondo, com tudo no lugar", como se existisse uma forma de bolo ou um quebra-cabeça a ser montado.

Outro clássico é a eterna batalha entre quem idolatra Barolo e quem acha que é na Toscana que se faz o melhor vinho da Itália. Entre Bordeaux e Borgonha é a mesma coisa. E ambos desgostam dos vinhos do Rhône, que são, supostamente, menos nobres do que os produzidos nos "grandes crus" da Borgonha ou de Bordeaux. Francês também vai dizer que vinho italiano é rústico e sem elegância... Mais um exemplo: já ouvi gente jurando que vinho branco é coisa para mulher e que homem bebe vinho tinto. Rosé, então, "só se o cara for gay"...

O ponto é: por que raios um dos dois grupos deveria estar certo se o vinho nada mais é do que a elaboração de uma bebida, pelo homem, a partir de matérias primas, equipamentos e outros recursos que ele encontra para produzir algo que o agrade e o deixe feliz? Fala-se de terroir e método de produção como se um fosse o certo e os demais "coisas da moda" ou "invencionices". Será que esse "certo" está escrito em algum livro sagrado ainda não descoberto por seres humanos imbecis como eu???

Tenho ficado meio de saco cheio dessas verdades absolutas e de tanto preconceito e arrogância no mundo do vinho. Já me peguei envergonhado de dizer que gostei de um vinho norte-americano, com bastante coco queimado, cujas uvas foram colhidas 5 anos atrás, em um grupo que só bebe vinhos do Piemonte com mais de 10 anos.

No fundo, o que eu acho é que as pessoas sentem a necessidade de conhecer a verdade e de se confortar e se acomodar nela. É complicado admitir que, mesmo bebendo vinho há 30, 40 ou 50 anos, ainda é possível se surpreender com algo diferente, nunca provado - ou provado, mas em outro momento, outra safra, com outra companhia, em outra situação. Ter de admitir que ainda não sabemos nada, por mais que busquemos conhecer esse fantástico e enigmático mundo do vinho, parece causar desconforto e angústia.

A verdade, se é que ela existe, é que é muito mais cômodo acreditar que descobrimos o que é melhor para nós e para a humanidade do que admitir que as coisas mudam a cada dia, inclusive nós mesmos. Somos muito mais felizes assim, fechados em nossas verdades, na nossa eterna e ignorante sabedoria.

10 comentários:

Anônimo disse...

Paulo,

Excelente artigo. Vc teve coragem de dizer aquilo que sempre esteve preso na minha garganta, principalmente do ódio vertido contra os vinhos do "Novo MUndo". As outras comparações utilizadas também foram bastante apropriadas.

abraço

Jeriel

Fernando Freire disse...

Uma das coisas que venho aprendendo, principalmente desde que entrei em uma confraria, é justamente o fato de que não há verdade absoluta no mundo do vinho. Você pode dar 88 para um vinho e eu dar 84 e estarmos os dois corretos. Você pode achar ameixa seca e eu morango e estarmos os dois corretos. Porque? Porque como vc mesmo disse no artigo, a análise do vinho é subjetiva, passa pelo gosto de quem está degustando, e por isso não é absoluta.

Me lembro ainda quando estava me aventurando, podemos dizer que ainda no começo, quando degustamos alguns Pinot Noir na comunidade de Vinhos, e fui duramente criticado porque comentei que meu pinot jovem estava na cor atijolada. As pessoas lêem que o vinho ganha a cor atijolada quando envelhecido, e estabelecem isso como verdade absoluta. E o mesmo vale para todo o resto do conhecimento.

Na minha opinião isso acontece porque todos os seres-humanos são carentes de atenção, querem os 15 minutos ou segundos de fama e sabedoria, então o que eles lêem e ententem como verdade, tomam para si e falam em alto e bom tom para os outros verem o quanto ele tem de conhecimento, o quanto ele sabe sobre o assunto. Uau.

Fernando Freire

Alexandre disse...

Reconfortante a lucidez do teu texto, especialmente para um enófilo iniciante como eu, que lê opiniões sobre tantas vertentes diversas, e vê tão pouco sentido nesta busca por uma verdade absoluta em algo que deveria ser simplesmente...prazer!

Rômulo Lôbo disse...

Parabéns Paulo pelo artigo.
Fantástico, vinho é simplesmente prazer.
Você disse tudo.
Um abs, Rômulo Lôbo

Paulo Sampaio disse...

Caros, obrigado pelas manifestações! Confesso que eu também já fui um chato tentando encontrar (ou criar???) regras. Acredito que, hoje, eu já esteja bem menos "preconceituoso". Aliás, tudo isso que critiquei nada mais é do que preconceito aplicado ao mundo do vinho. Vamos simplesmente beber e ser felizes!

Anônimo disse...

Parabéns pelo texto que escreveu!
Acho que tbem sou uma enófila imbecil!
Muita preocupação em definir padrões para o vinho não tem razão qdo na realidade ele é, como vc mesmo disse, algo muito subjetivo!

Eliana Kouri disse...

Parabéns pelo texto que escreveu!
Acho que tbem sou uma enófila imbecil!
Muita preocupação em definir padrões para o vinho não tem razão qdo na realidade ele é, como vc mesmo disse, algo muito subjetivo!

Nivaldo Sanches disse...

Ótimo artigo, Paulo ! Também acho que o vinho é essencialmente uma experiência de gosto e, como tal, inteiramente subjetiva. Há que beber de tudo e estar sempre de peito aberto, com a mente alerta, a espinha ereta e o coração tranquilo.
Só não dá pra discutir técnicas de vinificação, certo ? Um vinho feito com uvas não-viníferas certamente não vai ser um bom vinho, ainda que tenha montes de gente que goste da bebida ... concorda ?
Abraços, e visite meu blog : http://vinhotododia.blogspot.com/

Unknown disse...

Parabéns pelo excelente texto. Se pensarmos em curtir mais o momento e debater menos, acho que as coisas podem ficar melhores.

Walter Tommasi disse...

Boa Paulinho agora já não me sinto só rss . Vou aproveitar e dar o tema para teu próximo artigo. Vinhos naturebas e seus extremos ha ha ha