Dentre todas as experiências que tive durante minha incursão à Serra Gaúcha na passagem do ano, a visita à casa dos Bettú foi, sem dúvida, a mais interessante e que merece, pelo inusitado da coisa, um capítulo à parte.
Descobri essa minúscula vinícola por indicação de um amigo consultor de vinhos, que, ao saber da minha ida à Serra Gaúcha, disse para eu não perder a oportunidade de visitar o senhor Vilmar Bettú (foto ao lado) e beber os seus vinhos. Num primeiro momento, achei o nome um pouco estranho para vinhos finos, mas prometi que não voltaria do sul sem essa experiência na bagagem.
Depois de dois ou três dias em Bento Gonçalves sem ouvir ou ler sequer uma linha sobre os vinhos Bettú, já havia até esquecido dessa vinícola. Até que, circulando na boa adega do restaurante Canta Maria, vi uma garrafa diferente, original, cujo rótulo era apenas uma folha de parreira. E não é que finalmente eu havia encontrado um exemplar dos vinhos do Bettú!? Bem, daí para frente tudo ficou mais fácil. Consegui o telefone da vinícola, e do Canta Maria mesmo liguei para lá. Fui atendido por uma moça simpática, para quem perguntei sobre a possibilidade de conhecer seus vinhos. Curiosamente ela me perguntou se eu já havia “combinado” com seu pai, o que fez “cair a ficha” de que o negócio era realmente pequeno e familiar.
A moça, então, passou a ligação para o senhor Vilmar, para quem me identifiquei e disse quem me indicou, o que aparentemente abriu as portas para a visita, marcada para 30 minutos mais tarde - tempo suficiente para eu pegar o carro e partir para Garibaldi, onde fica a vinícola. Acabei usando esses 30 minutos na íntegra, apesar de Garibaldi ficar a apenas 10 km de onde eu estava, pois a vinícola fica na área rural da cidade, a mais ou menos 5 km do centro, na Estrada Geral São Gabriel, sem número – a sinalização da entrada da casa dos Bettú também não ajudou muito e eu acabei perdendo um pouco de tempo para encontrá-la.
Depois de bater um pouco de cabeça, finalmente cheguei ao local e fui recebido pela pitoresca figura do senhor Vilmar, um senhor de cerca de 60 anos, com um longo rabo de cavalo, que me conduziu até sua agradabilíssima casa, mais parecida com um sítio, com bastante verde, cachorros e tudo o que alguém que mora no meio do mato tem direito.
Logo entramos na casa, passamos por uma sala de aula improvisada e paramos em uma outra sala, embaixo do piso térreo da casa (ouviam-se passos sobre as nossas cabeças o tempo todo, já que o teto era de madeira), onde havia antigas barricas e uma mesa. O local era frio e escuro – bastante sombrio, diga-se de passagem. Passando por entre os barris, havia uma pequeníssima porta que conduzia a um apertado, úmido e escuro corredor, com prateleiras e centenas de garrafas empoeiradas deitadas. Por outra porta nesse mesmo corredor, via-se uma sala ainda mais escura, esta com dezenas ou centenas (estava muito escuro para contar) de garrafões de vinho, onde a bebida elaborada pelos Bettú envelhecia e aguardava pacientemente para ser engarrafada.
Voltando à sala da degustação, sentamos à mesa e começamos a conversar. Apesar da cara séria, quase de mau humor, e das poucas palavras iniciais, o senhor Vilmar se mostrou um ouvinte atento. Queria saber quem éramos e o que fazíamos antes de falar sobre o seu trabalho. Nos apresentamos e, em seguida, conhecemos um pouco da história do Bettú, que, além de vinhateiro, é engenheiro mecânico de formação e professor de física na rede pública de ensino, onde começou a lecionar “depois de velho”, em suas próprias palavras.
Mas vamos ao que interessa: os vinhos! Depois de 15 ou 20 minutos de papo a seco, o senhor Vilmar se levantou misteriosamente e, em segundos, voltou com uma garrafa sem rótulo, cujo vinho, branco, foi cuidadosamente servidos nas taças. Com muita curiosidade, mas sem querem mostrar ansiedade, dei a primeira “cheirada” na taça, que revelou um vinho bastante aromático. Tratava-se de um malvasia de cândia muito intenso e saboroso. Certamente um dos melhores nacionais com esta cepa – talvez o melhor que já bebi.
E o papo continuou, até que novamente o senhor Vilmar se levanta, sem dizer uma palavra, e volta com outra garrafa sem rótulo. Desta vez era um tinto, da uva marselan (resultante do cruzamento entre a cabernet sauvignon e a grenache), que também impressionou pelo corpo e complexidade. E aí, com mais coragem e menos vergonha – intimidade que só um bom vinho consegue despertar em tão pouco tempo –, começamos a perguntar e ouvir mais sobre os vinhos Bettú.
Entre outras coisas, descobrimos que o senhor Vilmar elabora apenas 5 ou 6 mil garrafas por ano, a partir de 30 cepas diferentes, todas de vinhedos próprios. Ele também nos contou que não existe muita regra ou quantidade para elaboração de cada vinho a cada ano. É uma experiência de alquimia. As uvas são colhidas e, se estão adequadas, os vinhos são elaborados. Porém, se o resultado não agrada, vão direto para o ralo. Os cortes também não seguem regra. Tudo depende do humor e da vontade do senhor Vilmar. O fruto desse processo artesanal e literalmente empírico são dezenas ou, no máximo, poucas centenas de garrafas de cada vinho a cada safra.
Entre todos os detalhes do processo de elaboração dos vinhos Bettú, o que mais me chamou a atenção foi saber que as uvas de 100% desses vinhos são esmagadas com os pés do próprio senhor Vilmar e de uma ou duas pessoas que o ajudam nessa tarefa – inclusive tive a oportunidade de ver as fotos do processo. Outra curiosidade é que, antes de serem engarrafados, os vinhos são armazenados em garrafões (tipo Sangue de Boi), onde envelhecem por um bom período (vai do gosto do senhor Vilmar). Quando o vinhateiro decide que é o momento de engarrafar, os garrafões partem para aquela salinha escura que mencionei anteriormente, onde ficam de pé por alguns dias para que os resíduos se acumulem no fundo da garrafa e, por decantação, sejam eliminados da bebida engarrafada (os vinhos não são filtrados).
A essa altura, o senhor Vilmar já havia me servido uma taça de um dos seus “bordaleses” (corte de cabernet sauvignon e merlot), este de 2001, que já mostrava boa evolução, com uma cor atijolada, e complexidade na boca e no nariz. Certamente foi o melhor vinho que bebi na casa dos Bettú – não provei o “lendário” nebbiolo, que possivelmente já não estava mais disponível para esse tipo de degustação. Aliás, segundo o senhor Vilmar, dei sorte de ser recebido daquela forma, de supetão, pois ele é seletivo, recebe pessoas por indicação e com hora marcada. O que resulta em degustações de no mínimo três horas, podendo chegar a sete, como aconteceu com um grupo que, segundo o senhor Vilmar, se “empolgou” demais.
Eu fui um pouco mais apressado, já que a agenda de visitas a outras vinícolas estava apertada. Após duas horas e meia de bate-papo, não poderia ir embora sem fazer mais duas perguntas. A primeira, sobre o rótulo dos vinhos. Segundo o senhor Vilmar, trata-se da imagem “escaneada” de uma folha de parreira verdadeira, o que me surpreendeu pela perfeição do resultado final. A outra pergunta foi, é claro, sobre a ausência de espumantes na vasta carta de vinhos dos Bettú. De forma muito honesta, o senhor Vilmar disse que não fazia espumantes porque não gostava de espumantes. Segundo o vinhateiro, espumante era diferente de vinho, era algo que ele bebia como se fosse água, para refrescar, e que, sendo assim, preferia uma boa cerveja, cujo teor de álcool é mais baixo e não o deixa embriagado. Mas ele acabou confessando que estava preparando o lançamento de um espumante. Disse isso meio a contragosto, como quem faz apenas para atender à demanda... Mas quem sabe nasça daí um belíssimo brut?
Para finalizar a agradável e interessantíssima visita, perguntei sobre a possibilidade de comprar os vinhos, quando prontamente recebi uma lista com dezenas de rótulos e seus respectivos preços. Cada vinho tinha um preço diferente, que começava com R$ 75 e ia até R$ 400. Perguntei se essa precificação estava relacionada à qualidade da bebida, e a resposta foi negativa. Segundo o senhor Vilmar, a qualidade de todos os vinhos era a mesma, pois ele só engarrafava os vinhos que atingiam a alta qualidade desejada. Segundo o vinhateiro, o preço refletia tão somente a quantidade de garrafas disponíveis em sua adega – conforme as garrafas vão acabando, o preço vai subindo. O objetivo é garantir um estoque mínimo de cada rótulo, para consumo próprio.
Saí da casa dos Bettú, rumo ao Vale dos Vinhedos, refletindo sobre a bela experiência que acabara de ter e imaginando quanto tempo esse negócio se manteria com esse formato, bastante “caseiro” – como uma “vinícola de garagem”, na definição do próprio Bettú, que descartou o rótulo de produtor de “vinho de butique”. Com a qualidade e a fama que seus vinhos começam a ganhar, será que o senhor Vilmar resistirá aos apelos do aumento da produção e, conseqüentemente, à automatização dos processos e, em última instância, a uma possível queda de qualidade visando aos lucros com a venda massiva de vinhos? Por via das dúvidas, comprei uma dúzia de garrafas para deixar descansando na minha adega.
Em tempo: quem quiser beber os vinhos Bettú deve ir à Serra Gaúcha ou a um dos poucos restaurantes para os quais o senhor Vilmar vende suas garrafas no RJ:
>> RestauranteTerzetto, 2247-6797, Rua Jangadeiros, 28 - Ipanema
>> Restaurante D'amici, 2541-4477 2543-1303, Rua Antônio Vieira, 18 B - Leme
>> Loja e Bistrô Confraria Carioca, 2244-2286, Rio Plaza Shopping - Botafogo
>> Restaurante e Loja Intervinos, 3322 6579, Estrada da Gávea, 698 - São Conrado
>> Restaurante Gibraltar, 2483-6275, Av. Érico Veríssimo, 690 - Barra da Tijuca
>> Montagu Bistrô, 2493-5966, Condado de Cascais, loja C - Barra da Tijuca
>> Churrascaria Estrela do Sul, 2437-8008, Rua João Olintho, 50 - Recreio dos Bandeirantes
>> Restaurante Don Pascual, 3417-0776, Estrada do Sacarrão, 867, casa 12 - Vargem Grande
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9 comentários:
Paulo e leitores: sou representante informal dos vinhos da Familia Bettu, a partir de uma experiência muito parecida com esta relatada aqui. A primeira diferença está em que cheguei pelas mãos do imão famoso do √ilmar, o Orgalindo, enólogo chefe, responsável pelos vinhos da Villa Francione, de São Joaquim, vinho que representa o Brasil na carta do Rubayat em seu restaurante de Madri, escolhido a partir de uma degustação formato blind test! A segunda diferença é que me indignei e disse que enquanto não houvesse algum distribuidor formal mais interessado, estaria disposto a divulgar e vender os vinhos da casa em São Paulo. É o que venho fazendo...
Breno, ainda não conheço esses vinhos, mas um amigo me recomendou fortememente. Vou a serra em julho e certamente vou conhece-los. Como se consegue contato com voce para compra destes vinhos?
O sr. Bettú é o melhor quanto aos vinhos e quanto a hospitalidade.
Tivemos a oportunidade de fazer uma degustação na propriedade do Bettú. Simplesmente fantástico! Sem sombra de dúvidas o melhor vinho em território nacional.
São poucos os vinhos onde a prioridade do autor é a personalidade da bebida, fazendo com que o vinho de uma safra nunca seja igual ao de outra, o que não acontece quando o vinho é produzido em grande quantidade como acontece nas grandes vinícolas.
Este é um vinho não padronizado, digno de pessoas que buscam um vinho verdadeiro.
ola como vao
gostaria de adquirir estes tao bem afamados vinhos aqui no Estado de Sao Paulo, sendo morador na baixada santista
atenciosamente
jose roberto l. de assumpçao jr
Provei um Bettú 2001 este final de semana. Só posso dizer que é uma obra de arte.
abraço,
Evandro
Confraria2panas
Ocasionalmente parei aqui.
Gente, é impossível produzir vinho de qualidade da maneira exposta.
Acho que vocês estão sendo enganados.
Abram o olho.
Vejam baccoebocca.it
Breno, caso veja esta post, favor fazer contato com mm_brz@hotmail.com, pois gostaria de adquirir mais algums garrafas dos "Bettú"
Oi Paulinho, tudo bem? Por favor, me passe o contato. Quero agendar uma visita para o final de semana.
Obrigada e beijo.
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