quarta-feira, 23 de setembro de 2020

"Verdades absolutas" no mundo do vinho


Há alguns anos tenho uma suspeita que, com o passar do tempo, tem se tornado quase uma convicção: entre todas as “verdades absolutas” alardeadas por experts do 
mundo do vinho, duas, que pouca gente refuta, me parecem enganar até os mais experientes degustadores.

A primeira é a crença de que existe uma “evolução natural” do paladar de quem degusta com frequência para determinados tipos de vinhos que seriam superiores em qualidade em comparação com outros mais apreciados por principiantes ou por quem bebe com frequência, mas de forma descompromissada – e aqui cabe diferenciar “degustar” e “beber”.

 

Esses ditos vinhos “de maior qualidade” são, geralmente, vinhos mais leves, equilibrados, sem arestas e sem muita intervenção e madeira, além de mais tempo de garrafa. Exemplos clássicos são os pinot noir da Borgonha e os rieslings alemães. Ok, vinhos sem arestas e mais equilibrados de fato expressam maior qualidade da bebida, mas não é apenas por isso que os degustadores “intensivos” chegam a eles após anos de estrada. O ponto, aqui, é o “abandono” de outros vinhos de estilos diferentes, mais encorpados e potentes, como os Amarone, os cabernet sauvignon californianos, os supertoscanos e os shiraz australianos, por exemplo.

 

Estes mais potentes são vinhos de estilo quase oposto aos “queridinhos” dos degustadores experientes, mas a razão, a meu ver, tem menos a ver com qualidade e muito mais com a "sobrevivência" de quem os bebe. Explico: quem come ou bebe alguma coisa todos os dias, mesmo que de ótima qualidade, também “enjoa”; e é isso que acredito que direciona o paladar de quem degusta com frequência. Beber todos os dias – ou quase todos os dias – nos força a buscar estilos de vinhos mais leves e fáceis de beber. E por acreditar que estamos “evoluindo” no paladar (de fato, estamos), deduzimos que esse estilo de vinho é superior a outros.

 

Sou um bebedor de vinhos bastante eclético, gosto de gamay a shiraz, e bebo ambos com o mesmo prazer quando a bebida é bem feita. Não me importo de apreciar vinhos com mais madeira ou menos tempo de garrafa, se a bebida entregra prazer e as características esperadas daquela uva e daquele terroir. No entanto, assim como a maioria dos meus confrades com mais tempo de janela, também tenho buscado cada vez mais vinhos leves e fáceis de beber, que me permitam curtir a bebida mesmo mantendo uma frequência alta de degustações.

 

A outra verdade que questiono já há algum tempo é sobre o “amadurecimento” do vinho – ou, no popular, aquela história de que vinho de qualidade, “quanto mais velho, melhor”. É claro que vinhos de alta qualidade geralmente se beneficiam do tempo em madeira ou na garrafa – muitas vezes em ambos, como os bons Rioja. No entanto, além de essa regra valer para poucos vinhos – os que têm característica para passar por esses processos –, mesmo estes chegam a um ponto de "maturidade" em que entram em uma curva decadente.

 

Ao longo dos últimos 20 anos, tenho participado de eventos e degustações de confrarias em que a brincadeira é provar e comparar vinhos com 15, 20, 30 ou mesmo 50 anos. E, para mim, ficou muito claro que sim, vinhos como Barolo, Brunello, Rioja e os bons Douro ganham com o tempo. Porém, ganham até 15 ou 20 anos – em raros casos, podem chegar a 25 ou 30 anos. A partir dali, o que eu percebo é uma convergência de aromas e do paladar desses vinhos para um mesmo ponto: o seu fim.

 

Explico novamente: a qualidade do vinho está também associada à sua tipicidade e aos aromas e sabores primários e secundários, adquiridos em razão das características naturais da uva, do terroir e da forma como a uva foi cultivada e o vinho, produzido. Após o estágio em madeira – quando feito – e o amadurecimento em garrafa, outros aromas se desenvolvem, os chamados terciários, que são “presentes do tempo”. E, aqui, eu chego no ponto do problema: o tempo é implacável com as pessoas, mas também com o vinho, e não tem “tipicidade” ou “terroir” que sobreviva para sempre; o tempo acaba se sobrepondo a esses elementos e levando o vinho para o lugar comum, em que em determinado momento se torna impossível diferenciar um bom Barolo de 40 anos de um bom Borgonha com a mesma idade.

 

No fundo, o grande mérito que vejo nesses vinhos quando já passaram do “ponto de abate” é terem sobrevivido até lá ainda agradáveis. Não entregam, no entanto, metade do prazer que entregavam no seu auge. Para mim, o auge de qualquer vinho é aquele ponto em que ele ganha complexidade com o tempo, mas mantém as características que o diferencia de outros vinhos e que o torna único – a fruta, o terroir, a forma como foi elaborado.

 

Já faz um tempo que penso nessas "verdades absolutas", mas sempre que arrisco comentar com outros bebedores de vinho, tomo vaia. Por isso resolvi escrever, mesmo sabendo que a surra no ambiente virtual geralmente é mais doída do que numa mesa de jantar. Tim-tim!

domingo, 31 de maio de 2020

O fogo apagou

Enquanto milhares de pequenos restaurantes se desdobram para manter o negócio vivo e o emprego de seus funcionários, criando promoções, vouchers para utilização futura e sistemas de entrega, grandes redes estão fazendo feio nesta crise e mostrando o que de fato são. Depois do vexame protagonizado pelo Madero e seu fundador, que fez pouco caso da saúde das pessoas em nome da manutenção das suas gordas receitas, agora é a vez do Fogo de Chão passar uma vergonha atrás da outra.

Como se não bastasse demitir sumariamente mais de 600 funcionários – a grande maioria deles trazida do Sul para “manter o padrão de qualidade” –, os ricos acionistas da rede, que conta com mais de 50 lojas mundo afora, decidiram não pagar parte dos direitos trabalhistas do seu pessoal. Para isso, invocou o tal “fato do príncipe”, que, como o próprio nome indica, é algo totalmente ultrapassado, jogando para o Estado – ou seja, para a população – a conta da sua decisão egoísta, desumana e antiética, totalmente desconectada do seu tempo e do que a sociedade espera de uma empresa desse porte. Além de extemporânea, a justificativa é mentirosa, já que o fechamento das lojas não se deu por vontade governamental, mas sim por contingência forçada pela pandemia da covid-19.

Mas o Fogo de Chão não parou por aí. Acionada pela Procuradoria Regional do Trabalho por conta do calote naqueles que sempre foram seu grande diferencial, suas pessoas, a rede entrou com pedido de sigilo do processo, ciente de que o que fez seria fortemente reprovado, inclusive por seus clientes. Afinal, quem ainda seria capaz de pisar em um estabelecimento bancado por ricos investidores que usaram uma tragédia humana para jogar na rua da amargura centenas de pessoas, passando a conta para o governo, que mal tem conseguido bancar medidas de saúde básicas para acudir a população?

Chegou a hora de separar gente séria de espertalhões, que se aproveitam do período mais crítico que todos nós que estamos aqui neste momento viveremos para tirar vantagem financeira em cima da dor alheia. Eu já tomei a minha decisão: não piso mais em uma loja do Fogo de Chão. Meu dinheiro esses investidores gananciosos e inescrupulosos não verão mais!